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Inês Pedrosa e a declaração de amor ao Brasil
Enviado por André Miranda
(do blog do Prosa & Verso, do O Globo)

A escritora portuguesa, atração da Flip, transforma paixão pelo país em literatura
(Foto de Marco Antônio Teixeira)

Um pedido de perdão a nossos patrícios portugueses por tentarmos roubar uma de suas mais talentosas autoras, mas a verdade é que Inês Pedrosa está praticamente se tornando uma brasileira. A escritora é uma das convidadas da 6a. Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), que será aberta hoje, às 19h, com a “A poesia envenenada de Dom Casmurro”, de Roberto Schwarz, lembrando a obra de Machado de Assis, autor homenageado pelo evento este ano. Amanhã, às 19h, Inês dividirá a mesa “Sexo, mentiras e videotape” com a britânica Zöe Heller e a gaúcha Cíntia Moscovich. Mas visitar o país, para a escritora portuguesa, não é o bastante para confessar seu amor. Seu novo romance, chamado “A eternidade e o desejo”, recém-lançado pela Alfaguara, é ambientado no Brasil, mais especificamente numa Salvador pontuada por textos do Padre Antônio Vieira. Em entrevista ao GLOBO, a simpática escritora fala de sua paixão pelo país, comenta a importância do amor em sua literatura e critica o acordo ortográfico da língua portuguesa.

“A eternidade e o desejo” é passado no Brasil. Quantas vezes você vem ao país anualmente?
Três, em média. Mas conto aumentar essa média… embora o meu sonho seja poder ir ficando mais tempo de cada vez.

É possível enxergar o livro como uma declaração de amor ao Brasil?
Creio que sim. O amor, como a literatura, não tem exterior.

O que o romance tem de pessoal? O que você levou da sua própria viagem ao Brasil para a história da protagonista Clara?
O percurso geográfico, a experiência da excursão de grupo, a visita ao terreiro de candomblé, as personagens dos guias turísticos — tudo isso saiu diretamente da viagem que fiz com o Centro Nacional de Cultura aos locais brasileiros relatados pelo Padre Antônio Vieira.

E por que pontuar a história a partir de relatos de Vieira? Qual a importância dele para a literatura lusófona contemporânea?
Fiz essa viagem lendo intensamente o Padre Antônio Vieira, e os seus poderosíssimos textos foram o rastilho do meu livro. Não gosto da expressão “lusófona”, acho mais justa a expressão “literatura de língua portuguesa”. Fernando Pessoa definiu Vieira como “o imperador da língua”, e é isso que ele continua a ser: os seus textos resistem ao tempo, porque analisam, com uma lucidez alucinada, as cintilações e as trevas da alma humana — e também porque têm uma cadência encantatória, hipnótica, manifestando um domínio absoluto da arte de manipular consciências através da palavra.

O livro traz doses fortes de amor e, também, de dor, de perda. Esses fatores, amor e dor, estão sempre ligados? A mesma relação poderia ser feita também em seu outro livro, “Fazes-me, falta”, não?
Amar é aceitar o risco da dor, porque toda a entrega traz em si o fantasma da perda — quanto mais nos entregamos a alguém, mais perdemos o controle da nossa felicidade; em vez de, só para dar o exemplo maior, sofrermos por antecipação a nossa morte, passamos a sofrer por antecipação o desaparecimento do ser amado. Esse tema surge muito em “Fazes-me falta”, sim.

Há alguns anos, praticamente só dois autores portugueses contemporâneos eram publicados e conhecidos no Brasil: José Saramago e Lobo Antunes. Hoje, além de você, temos José Luiz Peixoto, Francisco Viegas, Miguel Sousa Tavares, Gonçalo Tavares, Patrícia Reis, Lidia Jorge… A mudança ocorreu no Brasil, que teria passado a aceitar melhor a literatura portuguesa, ou ocorreu em Portugal, que teria passado a divulgar melhor seus autores?
A mudança ocorreu nos dois países, felizmente. Também Portugal voltou a editar autores brasileiros. Penso que estamos todos finalmente a conseguir deixar para trás complexos coloniais e preconceitos caricaturais. Essa comunhão enriquece-nos mutuamente.

Na Flip, você vai participar de uma mesa chamada “Sexo, mentiras e videotape”. É claro que os nomes dessas mesas eventualmente são brincadeiras, mas, seguindo esse espírito, o que haveria de sexo, mentiras e videotape em sua literatura?
Videotape há muito pouco — eu gosto mais de cinema a sério, sala escura, o esplendor do mistério das imagens. Sexo existe em todo o ato criativo e, por isso, nos meus livros também — aliás, cada vez mais. Mentira é a própria ficção: uma mutante mentira que faz com que o brilho fixo da verdade se torne perceptível.

O que você acha do acordo ortográfico da língua portuguesa?
Só quem nunca leu o desconchavado texto do acordo pode achar que ele pode servir para alguma coisa. Eu li — e portanto sei duas coisas simples e fundamentais: em primeiro lugar, o acordo mantém inúmeros desacordos, porque decreta que a ortografia respeitará “a pronúncia culta da língua” (expressão que, por si só, é uma gargalhada de cultivadíssima estupidez). Ora, isso significa, por exemplo, que o Brasil continuará a escrever “recepção” e Portugal passará a ser “receção”. Em segundo lugar, as incongruências (na hifenização, por exemplo) são tantas, as exceções tão numerosas, que ninguém vai conseguir acertar com o desacordo correto. E que fazer àqueles cuja pronúncia não é, segundo os sábios, “culta”?

Como Portugal tem recebido o acordo?
A população, em geral, não percebe para que servirá o acordo — e, sim, tem medo que isso signifique uma derrota do português de Portugal face ao do Brasil. Mas é um medo meramente futebolístico, rápido e passageiro como um gol. Se o dinheiro investido neste acordo e nos seus mordomos fosse gasto a fazer ações de difusão da língua e das suas literaturas pelo mundo afora, a difusão da língua seria muito maior.

O angolano Pepetela disse que é difícil avaliar qual o mais importante escritor de língua portuguesa. Você concorda?
Pepetela tem razão: não só é difícil e contrário ao espírito da literatura hierarquizar escritores segundo a sua importância, como é igualmente difícil saber se um escritor está realmente vivo, só porque existe, fisicamente, no presente. Desconfio que muitos deles parecem vivos, porque publicam livros, e até às vezes em grandes tiragens, com muitas vendas, mas estão mortos — porque não acrescentam um grão de inquietação ao mundo. Eu juraria que o Padre Antônio Vieira está vivo — como Clarice Lispector ou Fernando Pessoa, Machado de Assis ou Luís de Camões. Mas eu nem sequer conheço todos os escritores de língua portuguesa vivos. Dos que conheço, aquele que me perturba e motiva desde há mais tempo e com maior intensidade é Agustina Bessa Luís.

E você já está trabalhando no seu próximo livro? Poderia nos dizer sobre o que ele vai tratar?
Vagamente. Sei que vai passar pelo Brasil, de novo, e muito naturalmente, porque eu sinto-me, se me dão licença, pelo menos tão brasileira como portuguesa. Fui criada pelo Chico, pela Bethânia e pelo Caetano, pela Clarice e pelo Drummond e pelo Guimarães Rosa, amo a poesia do Eucanaã Ferraz, a poesia da Maria Lúcia Dal Farra e a poesia e os ensaios do Antonio Cicero, que escreve aquilo que eu penso antes que eu tivesse tido capacidade sequer de pensar em pensá-lo. Quanto à trama, não posso adiantar ainda muito — não só para não a esgotar, como também porque não é muito importante. Os enredos são pretextos, melodias que nos conduzem à sinfonia do tema. Só sei que o meu próximo livro vai tratar do intratável de sempre: as declinações do amor (do riso às lágrimas, do poder à perdição) e as antevisões da morte. Não vejo que haja outro assunto. Para mim, pelo menos, não há.

(Entrevista publicada no Segundo Caderno, do O Globo desta quarta-feira)