Escrever um livro de memórias – ou mesmo contos, pequenas histórias, é algo que está ao alcance de todos nós. As pessoas tendem a ficar paralisadas com o pensamento de escrever um livro de memórias. Como resolver a desordem sufocante do passado? Temos medo, principalmente, de escrever sobre nós mesmos.

A “cura”, sugerida pelo autor William Zinsser* se resume a duas palavras: “pense pequeno”.

Escreva sobre as partes de suas vidas que consideraram sem importância. Uma mulher, da turma dele de 2011, em Nova Iorque, pertencia a uma família cristã de destaque no Cairo. Em 1953, quando ela tinha 10 anos, a família partiu para a América; seu pai, ex-membro do gabinete do rei Farouk, estava em desacordo com o novo regime de Nasser. Sua família, então, colocou em malas apenas suas roupas de inverno, não querendo revelar que estavam indo embora para sempre. Nem à própria família, nem a nenhum conhecido.

Já nos Estados Unidos, e então matriculada no curso do Zinsser, essa mesma garota do Cairo viria a desenvolver uma longa e bem-sucedida carreira na tv. Mas nunca havia contado sua história. Nem pra si mesma. E sua história não era só a história dela; milhares de imigrantes antes dela viveram a mesma situação. Sua história – o núcleo emocional de sua vida – era a infância privilegiada no Cairo e o acontecimento que mudou tudo de uma hora pra outra. Ele pergutou se ela já havia escrito sobre aqueles anos; ela queria muito e estava chateada por não se achar capaz de escrever.

“Não sei o suficiente sobre a história política do Egito moderno”, disse ela. “Preciso fazer muita pesquisa primeiro.” Zinsser a encorajou e disse para diminuir as cobranças feitas a si mesma. Afinal, o que não falta são especialistas que escrevendo livros sóbrios sobre a era Nasser, mas nenhum deles pode escrever a história dela. Se ela puder contar a história de uma família egípcia, também contará a história de muitas outras famílias que passaram pela mesma situação.

A ideia nunca tinha ocorrido àquela aluna, e ela se animou; estava livre! Na semana seguinte, lhe deixou um breve manuscrito chamado “Um fragmento”. Suas frases eram absolutamente simples:

O exercício

Finalmente é hora de partir. Estamos no portão em frente à casa e o Buick está pronto para seguir. Tenho a sensação que meu irmão e eu estamos prontos há horas. Seguro a mão da minha mãe, mas ela está em outro lugar, inundada de lágrimas. Realmente não consigo entender o porquê. Estamos indo viajar de avião – o que poderia ser melhor? Mas mamãe não vê a jornada do mesmo jeito que eu. Já passou pela casa e verificou se todos os móveis estão cobertos com lençóis brancos. Cobrir os móveis com lençóis para protegê-los contra o sol perverso do Egito geralmente significa ir a Alexandria no verão.

Adorei tudo no verão, exceto os intermináveis ​​cochilos que as crianças têm que tirar até chegar a hora de podermos voltar para a praia.

Mas essa viagem não é para Alexandria. Houve uma conversa interminável sobre a “América”. E eu sei que é sério, porque sempre que mencionam a palavra, mamãe inventa alguma outra coisa pra eu fazer e não me deixar prestar atenção…

Todos esses detalhes aparentemente pequenos são reconhecidamente verdadeiros. Que criança nunca ouviu adultos sussurrando planos que não eram para as crianças ouvirem? Zinsser, então, perguntou à mulher do Egito se ela já havia escrito algo assim antes. Ela nunca tinha. Surpreendente! Por que demorou quase 70 anos?

Resumindo: atreva-se a contar a menor das histórias, se quiser gerar grandes emoções.

Mesmo que você não tenha passado por uma situação tão extrema, eu, daqui, posso apostar que essa época do ano traz muitas lembranças. Se não tem grandes lembranças de algum Natal, certamente, tem de alguma passagem de ano.

Que tal parar de procrastinar, seguir o conselho de Zinsser, e escrever uma delas, “pensando pequeno”? Comece agora mesmo!

E, claro, a gente espera que esse Natal e esse ano novo sejam tão bons, mas tão bons, que sejam guardados – depois – com muito carinho, nas suas memórias.

Boas Festas e feliz 2020!
 

William Zinsser  morreu aos 92 anos, em 2015. Começou a carreira como jornalista no New York Herald Tribune. Foi professor de escrita nas universidades de Yale e Columbia e na New School. Tem mais de 18 livros publicados, entre eles Writing about your life (2005), ainda sem tradução no Brasil, com dicas para se escrever sobre o passado, entre outros livros de escrita criativa.

 

https://www.terapiadapalavra.com.br/entrevista-affonso-romano-literatura-escrita-transformacao/

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