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Estrela da Flip, Cees Nooteboom lança livro com protagonista brasileira
MARCOS STRECKER
da Folha de S.Paulo

Poucos escritores viajam como o holandês Cees Nooteboom (a pronúncia é “seis nôtebôm”), nome recorrente entre os candidatos ao Prêmio Nobel e um dos principais convidados da Festa Literária Internacional de Parati (Flip), que vai de 2 a 6 de julho.

crédito da foto: Gustavo Cuevas/Efe

Cees Nooteboom, uma das atrações da Flip, lança livro com protagonista brasileira Alma

Como Paul Theroux e Bruce Chatwin, ele transforma suas aventuras em literatura. Como Melville ou Joseph Conrad, foi marinheiro para conhecer o mundo. E como Peter Handke ou Robert Walser, usa suas jornadas como inspiração filosófica.

Seu último romance, “Paraíso Perdido”, que agora chega às livrarias, tem uma curiosidade. A personagem central (Alma) é uma brasileira, moradora dos Jardins, fã de Maria Bethânia, que inicia sua jornada espiritual para superar o trauma que sofre em São Paulo: um estupro na favela de Paraisópolis, depois que seu carro enguiçou.

Ela e a amiga Almut, descendentes de alemães, partem para realizar um sonho: conhecer a Austrália, onde Alma vira amante de um aborígene e tem um encontro efêmero com um crítico literário holandês (alter ego de Nooteboom). E é o crítico que encerra o livro, em Berlim, depois de ter reencontrado Alma em uma clínica na Áustria, por acaso.

Inspirado no poema épico de John Milton, Nooteboom também empresta do imaginário de Rilke a figura dos anjos, que povoam seu livro. É exatamente fantasiada de anjo, em uma intervenção teatral na Austrália, que Alma aparece para o holandês, como uma revelação.

Isso é o livro. Nooteboom, por outro lado, é terreno e cuidadoso ao comentar suas influências. Falando à Folha de Amsterdã, por telefone, evita citar os contemporâneos e diz que leu muito Borges, Proust, Ovídio e Homero. “Ninguém escreve sem ter ao menos cem escritores em suas mãos”.

Anjos

A figura do anjo tem uma inspiração real. Veio do “Angel Project”, que assistiu na cidade australiana de Perth, ao participar de um festival literário. “Isso realmente aconteceu. Você precisava percorrer a cidade e encontrar anjos. Acompanhei, em 2000, então foi fácil descrever. Usavam jovens e atores”.

O tema também tem, claro, um fundo religioso. “Tive uma educação católica. Anjos sempre estavam presentes”, diz. “Nós adoramos a idéia de anjos. Eles são uma necessidade para que exista amor”.

A visão de São Paulo também é concreta, resultado de várias viagens, a última pouco antes de escrever o livro, publicado em 2004. “Fiquei passeando de ônibus, para sentir a cidade, que é enorme”.

Nooteboom conhece o Brasil desde o final dos anos 60. Já esteve em Manaus, Brasília e no Rio. “Não posso dizer que ‘conheço’ o país. Mas, como falo espanhol, consigo entender textos em português”. (“Eu naum fálo portugueishh”, emenda.)

“Me perguntam como alguém com a minha idade pode se colocar no papel das jovens. Mas é ficção, eu achei perfeitamente plausível que duas jovens brasileiras, com uma certa educação, estivessem interessadas no imaginário dos aborígenes. Estive na Austrália várias vezes. Para mim não é difícil imaginar duas garotas em um país muito distante. E a idéia da perda de inocência em diferentes perspectivas me atraía. A Austrália é um exemplo disso, onde uma civilização de 40 mil anos também perdeu a inocência”, afirma.

Viagem

E como relatos de viagem se transformam em literatura? “No meu caso foi simples. Eu sempre viajei, desde os meus 17 anos. Isso aparece nos meus livros sem soar artificial, incluindo “Paraíso Perdido”. Minha vida tem a ver com viagem”.

O interesse pela aventura já o levou a todo o mundo, começando pelo Suriname, nos anos 60, como marinheiro. A paixão pela Espanha virou livro (“Caminhos para Santiago”). E as jornadas por Berlim inspiraram uma de suas principais obras, “Dia de Finados”, que trata da ausência.

Já “Tumbas de Poetas y Pensadores” (ed. Siruela, 264 págs., 42, R$ 107 mais frete), publicado na Espanha, traz textos dele e fotos da mulher, a fotógrafa Simone Sassen, abordando os túmulos pelo mundo de escritores famosos, como Thomas Mann, James Joyce e Pablo Neruda. No Rio, os dois registraram os túmulos de Machado de Assis (que ele conhece) e de Carlos Drummond de Andrade (que conhece muito). As respostas de Nooteboom explicam muito da sua obra. Híbrida, é ao mesmo tempo sofisticada, prosaica, fluente, lírica e repleta de referências.

Ele trabalha atualmente em dois livros. Um de contos, outro com relatos de viagem que inclui suas mais recentes aventuras: no sul da Argentina, na Índia e no remoto arquipélago norueguês de Svalbard, próximo ao pólo norte. E, claro, talvez Paraty, para onde segue em julho, antes de seguir para Salvador (“a parte mais africana do Brasil”).