fbpx

VOZES
[trecho do livro de Svetlana Alexiévitch, Vozes de Tchernóbil]

Não sei do que falar… Da morte ou do amor? Ou é a mesma coisa? Do quê? Estávamos casados havia pouco tempo. Ainda andávamos na rua de mãos dadas, mesmo quando entrávamos nas lojas. Sempre juntos. Eu dizia a ele “eu te amo”. Mas ainda não sabia o quanto o amava. Nem imaginava… Vivíamos numa residência da unidade dos bombeiros, onde ele servia. No segundo andar. Ali viviam também três famílias jovens, e a cozinha era comunal. Embaixo, no primeiro andar, guardavam os carros, os carros vermelhos do corpo de bombeiros. Esse era o trabalho dele. Eu sempre sabia onde ele estava e o que se passava com ele. No meio da noite, ouvi um barulho. Gritos. Olhei pela janela. Ele me viu: “Feche a persiana e vá se deitar. Há um incêndio na central. Volto logo”.

A explosão, propriamente, eu não vi. Apenas as chamas, que iluminavam tudo… O céu inteiro… Chamas altíssimas. Fuligem. Um calor terrível. E ele não voltava. A fuligem se devia à ardência do betume, o teto da central estava coberto de asfalto. As pessoas andavam sobre o teto como se fosse resina, como depois ele me contou. Os colegas sufocavam as chamas, enquanto ele rastejava. Subia até o reator.

Arrastavam o grafite ardente com os pés… Foram para lá sem roupa de lona, com a camisa que estavam usando. Não os preveniram, o aviso era de um incêndio comum…

Quatro horas… Cinco horas… Seis… Nós tínhamos combinado de ir às seis horas à casa dos pais dele, para plantar batatas. Da cidade de Prípiat até a aldeia Sperijie, onde viviam, são quarenta quilômetros. Nós íamos lá semear, arar… Era o trabalho favorito do meu marido… A mãe dele sempre se lembra de que ela e o pai não queriam deixá-lo ir para a cidade, chegaram a construir uma casa nova. Mas ele foi convocado pelo Exército. Serviu em Moscou nas tropas dos bombeiros e quando voltou só queria ser bombeiro. Nada mais. (Silêncio.)

Às vezes parece que escuto a voz dele… Que está vivo… Nem as fotografias me tocam tanto quanto a voz dele. Mas ele nunca me chama. Nem em sonhos… Sou eu que o chamo…

Sete horas… Às sete horas me avisaram que ele estava no hospital. Corri até lá, mas havia um cordão de policiais em torno do prédio, ninguém passava. As ambulâncias chegavam e partiam. Os policiais gritavam: “Os carros estão com radiação, não se aproximem”. Eu não era a única, todas as mulheres cujos maridos estavam na central naquela noite vieram correndo, todas. Quando vi saltar de um carro uma conhecida que trabalhava como médica no hospital, corri e a segurei pelo jaleco:

“Me deixe entrar!”

“Não posso! Ele está mal. Todos estão mal.”

Agarrei-a com força:

“Só quero ver o meu marido.”

“Está bem”, ela disse. “Vamos correr. Mas só por quinze, vinte minutos.”

Eu o vi… Estava todo inchado, inflamado… Os olhos quase não apareciam…

“Ele precisa de leite. Muito leite!”, ela me disse. “Eles devem beber ao menos três litros.”

“Mas ele não bebe leite.”

“Agora vai ter de beber.”

Muitos médicos, enfermeiras e, sobretudo, as auxiliares daquele hospital, depois de algum tempo, começaram a adoecer. Mais tarde morreriam. Mas na época ninguém sabia disso…

Às dez horas da manhã morreu o técnico Chichenok… Foi o primeiro… No primeiro dia… Logo soubemos de outro que tinha ficado debaixo dos escombros, Valera Khodemtchuk. Não conseguiram retirá-lo, foi emparedado no concreto. Mas ainda não sabíamos que estes seriam apenas os primeiros.

Perguntei:

“Vássienka, o que é que eu faço?”

“Vá embora daqui! Vá embora! Você vai ter um filho.”

Eu estava grávida. Mas como deixá-lo? Ele suplicava:

“Vá embora! Salve a criança!”

“Primeiro eu vou te trazer leite, depois decidimos.”

Então, a minha amiga Tânia Kibénok chegou… O marido também estava nessa mesma enfermaria. Ela veio com o pai de carro e partimos juntas para a aldeia mais próxima, que ficava a uns três quilômetros da cidade. Compramos várias garrafas de três litros de leite. Umas seis garrafas, que dessem para todo mundo… Mas o leite provocou vômitos terríveis, eles perdiam os sentidos, e por isso os puseram no soro. Os médicos, por algum motivo, nos afirmavam que eles tinham se envenenado com gases, ninguém falava em radiação.

No entanto, a cidade ficou lotada de veículos militares, todas as estradas foram fechadas. Havia soldados por toda parte. Os trens regionais e expressos pararam de circular. As ruas eram lavadas com uma espécie de pó branco… Fiquei assustada: como iria, no dia seguinte, à aldeia comprar leite fresco? Ninguém falava em radiação, só os militares circulavam com máscaras respiratórias… As pessoas compravam os seus pães, saquinhos com doces e pastéis nos balcões… A vida cotidiana prosseguia. Só que… as ruas eram lavadas com uma espécie de pó…

À noite, já não me deixaram entrar no hospital. Havia um mar de gente ao redor… Fiquei em pé debaixo da janela da enfermaria; ele se aproximou e gritou alguma coisa para mim. Parecia desesperado! Alguém na multidão entendeu o que ele disse: seriam levados àquela noite para Moscou. Todas nós, esposas, nos juntamos. Decidimos: vamos com eles. “Que nos deixem ir com os nossos maridos!

Vocês não têm direito!” Lutamos, nos atracamos com os soldados, que já haviam formado um cordão duplo e nos empurravam. Foi então que um médico surgiu e  confirmou que os doentes seriam levados de avião para Moscou, e que era preciso roupas para eles, pois as usadas na central haviam sido queimadas. Os ônibus já não circulavam, então atravessamos a cidade correndo. Quando finalmente voltamos com as sacolas, o avião já tinha partido. Fomos enganadas de propósito. Para evitar que gritássemos, que chorássemos…

Liudmila Ignátienko, esposa do bombeiro falecido Vassíli Ignátienko

 

Aqui no Brasil, o livro foi publicado pela Companhia das Letras.