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Por Suzana Herculano Houzel

O cérebro cria com base em suas experiências pessoais, usando todo o material de que dispõe, fruto de aprendizados anteriores

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Elizabeth Gilbert é a autora mundialmente famosa por seu livro Comer, rezar, amar (Objetiva, 2008). Após sucesso tão estrondoso, qual seria a chance de deixar leitores igualmente contentes com um segundo livro? Em uma palestra no TED.com, muito articulada e divertida, ela fala da pressão por criatividade e sucesso… e explica que a criatividade não depende dela, pois é obra de um gênio externo que visita autores e artistas quando bem entende, por exemplo em pleno engarrafamento, quando não há papel e lápis ou laptop à mão.

Discordo veementemente. A criatividade depende, sim, de esforço próprio, e há muito que se pode fazer por ela.

Tome, por exemplo, um dos mestres da arte do improviso, uma das expressões máximas da criatividade: o pianista Keith Jarret, a quem tive o privilégio de assistir em concerto alguns anos atrás. O homem se senta ao piano, contempla o teclado por alguns instantes… e algo inédito sai de seu cérebro, em ligação direta com o piano. Como?

Improvisos não saem do nada: é preciso anos de treino e muito conhecimento musical para que algo fascinante e harmonioso saia a cada vez. Por outro lado, tocar com destreza e boa interpretação não bastam para improvisar.
Não é porque a criatividade exija a ativação de alguma outra parte não treinada do cérebro. Pelo contrário, a criatividade depende das mesmas regiões que são responsáveis pelos sentidos, pela memória, pelo reconhecimento de padrões – mas atuando de formas diferentes, inusitadas, livres do autocontrole que aprendemos a exercer o tempo todo.

Quando pianistas de jazz tocam de improviso dentro de um aparelho de ressonância magnética funcional, fica claro que seu cérebro momentaneamente abre mão de controlar a si mesmo, com uma grande redução da atividade do córtex pré-frontal lateral. As porções sensório-motoras do córtex continuam a toda, acompanhando a música e gerando as próximas notas, enquanto aumenta a ativação do polo frontal do cérebro, que guarda nossa personalidade e história pessoal. Faz sentido; a improvisação é uma expressão altamente pessoal, emocional, e livre da história do músico que toca.

Improvisar, então, é associar informações de maneira livre do controle pré-frontal: é deixar o cérebro encontrar melodias de acordo com suas memórias, valores e emoções, sem o cerceamento pré-frontal. Aprender a criar, portanto, é aprender a deixar inertes os ímpetos controladores do córtex pré-frontal, enquanto o resto do cérebro cria com suas associações correndo soltas, naquele estado de “flow” em que a gente se descobre espectador das próprias ações.

Por outro lado, o cérebro cria com base em suas experiências pessoais, usando todo o material de que dispõe, fruto de aprendizados anteriores. Tudo o que vivemos, observamos e sentimos serve como elementos para o cérebro na hora da criação. Quanto mais ricas nossas experiências, maior é o leque de matéria-prima à disposição para a arte.

E criar, como todo o resto, também é algo que melhora com a prática, conforme se tenta e se aprende a ignorar o julgamento do próprio córtex pré-frontal (e o dos outros). Criar está ao alcance de todos, e como o resto, depende de esforço.

Em tempo: o segundo livro da autora não chegou nem aos pés do sucesso do primeiro. Mas acho que ela diria que foi culpa dos gênios…

Este artigo foi originalmente publicado na edição de Maio de Mente e Cérebro 2015.