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Paixões interrompidas se tornam o símbolo das vidas nas quais, quem sabe, teríamos sido outros. Dizem que, às vezes, os mortos permanecem entre os vivos porque, antes de irem embora de vez, eles precisam pagar ou cobrar dívidas, entregar um recado, recompensar quem os ajudou ou vingar-se de quem os atrapalhou. Em suma, eles ficam durante um tempo porque sua vida deixou pendências.

Que eles andem assim pelas ruas ou pelo cérebro da gente, tanto faz. De uma maneira ou de outra, os mortos com quem temos negócios inacabados continuam entre nós.

Algo parecido acontece com nossos parceiros amorosos: alguns somem quando o amor acaba –pronto, foi bom enquanto durou. E outros, não.

Os que somem (esquecem-se da gente, e a gente se esquece deles) não foram menos significativos do que os outros –o amor não foi menos intenso.

Apenas parece que a história de amor com eles não deixou pendências.

Agora, os que não somem, assombram (e alegram) nossa vida de várias formas: em reencontros e “revivals” periódicos, no lamento tácito do “destino que nos separou” e nos sonhos do uma vida que seria “diferente”, se tivéssemos escolhido ficar com eles ou eles tivessem escolhido ficar conosco.

“Café Society” é um dos melhores e dos mais divertidos entre os filmes de Woody Allen. É também um filme maduro: se é que existe uma sabedoria dos 80 anos, Woody Allen está com ela. E os 80 são uma ótima idade para se debruçar sobre os amores inacabados.

O filme conta a história de Bobby, que vai de Nova York a Hollywood para tentar fortuna. Ele conhece Veronica. Juntos, eles sonham com Greenwich Village e parecem preferir os poetas e os artistas ao “star system”. Mas eis que reaparece o namorado anterior de Veronica”¦

Deixo ao espectador o prazer de se comover com a história. E me pergunto: o que faz com que, apesar da separação dos amantes, um amor não acabe?

Às vezes, os amantes são afastados por uma força maior: o deslocamento obrigatório de um deles e a impossibilidade de o outro acompanhá-lo –mudanças inevitáveis, uma doença, a morte”¦

Ou, então, a separação acontece pela renúncia de um dos dois, que entende seu gesto como heroico –como quando alguém sacrifica seu amor para cuidar da velha mãe ou das crianças pequenas.

Outras vezes, um dos amantes ou os dois se apaixonam por terceiros e, em vez de terminar sua história comum, eles não deixam de se amar (sim, é possível amar duas pessoas ao mesmo tempo).

Outras vezes, ainda, um dos amantes desiste por comodismo e conforto, e os dois passam a vida lamentando essa escolha.

Enfim, amores inacabados fazem parte da história de todos ou quase. E essas paixões interrompidas se tornam o símbolo das vidas nas quais, quem sabe, teríamos sido outros do que somos.

Mas os amores inacabados não têm nada a ver com a esperança do novo, do inédito. Eles são o lamento dos caminhos dos quais desistimos.

Quando pensamos neles (ou quando eles reaparecem na realidade), eles funcionam como exercícios (teórico-práticos) contra a continuidade e a previsibilidade de nossa vida, como lembretes de uma liberdade possível desperdiçada.

A primeira lei de Newton diz que uma massa sempre tende a continuar seu movimentando em linha reta e com velocidade constante.

A gente não é apenas uma massa: obedecemos ao princípio de inércia, amamos a repetição, mas, ao mesmo tempo, vige para nos uma espécie de primeira lei da psicodinâmica, segundo a qual estamos sempre sonhando com um movimento que seja uma exceção à lei da inércia.

Um amante gravita como um planeta ao redor do seu sol, que é o objeto amado. O movimento do amante é curvilíneo por causa da força centrípeta que puxa o amante em direção de seu amado. Se não fosse por essa força centrípeta, todos estaríamos avançando sozinhos, nas nossas trajetórias retilíneas. Em tese, para sair da órbita do amado, o amante poderia encontrar uma outra força centrípeta que o atraísse mais.

Para se liberar de um amor, seria preciso encontrar outro. Mas não é só o novo que nos liberta: o passado também tem essa função. Sem recorrer a um novo amor, todos conhecemos o charme da ideia de sair de órbita, de sair do círculo.

A segunda lei da psicodinâmica é o charme da tangente, que pode ser alimentado pelo espírito de aventura e pela paixão do novo, mas também pela nostalgia dos amores inacabados –ou seja, dos rumos que não tomamos nas encruzilhadas da vida.

Contardo Calligaris